A
discussão de processos identitários abordando aspectos conceituais e
contextuais implica, primeiramente, na concepção da identidade, enquanto
categoria de análise, como uma construção social, marcada por polissemias que
devem ser entendidas circunscritas ao contexto que lhe conferem sentido. Neste
artigo, procurou-se abordar a identidade associada à multiplicidade de sentidos
e terminologias que atravessam a configuração do termo ao longo da história e
num mesmo período histórico, expresso pela diversidade de áreas de conhecimento
que se dedicam ao estudo do tema em questão. A partir disso, faz-se necessário
um exercício de re-significação da identidade, sendo útil para tal
empreendimento considerar os princípios da dialética, apresentados não segundo
Marx em Para Crítica da Economia Política (1978b) em seu método de
exposição, mas na forma de “leis”, como delineadas por Gadotti (1983), pois
permite caracterizar a identidade enquanto uma processualidade histórica
vinculada ao conjunto das relações que permeiam a vida cotidiana. As várias
configurações de identidade habitam reflexões dos teóricos da modernidade,
como Giddens (1991) ou da pós-modernidade como Santos (1999) e exigem a
circunscrição deste homem ao momento atual do mundo globalizado, marcado por um
capitalismo desorganizado, a fim de explicitar as novas bases sobre as quais se
articula o pessoal e o social na contemporaneidade.
O
termo identidade sempre desperta interesse, tanto das pessoas comuns,
representantes do universo consensual, quanto de cientistas sociais.
Inúmeras
questões estão associadas à identidade. Historicamente, o termo empregado para
significar o que hoje se entende por identidade foi personalidade,
privilegiando não só a perspectiva individualista, mas também uma visão em que
os princípios da ciência médica sustentavam toda proposta de compreensão. Nesse
contexto, os debates versavam sobre o “normal” e o “patológico”, o “natural” e
o “inerente”.
A
priorização do ser biológico e individual sustentados por uma estrutura
psíquica, invariante enquanto processo normativo, institui uma
dicotomia entre o indivíduo e o grupo, entre o homem e sociedade. O conceito de
personalidade oferecia um conjunto de princípios que previamente classificavam
os indivíduos em categorias, confirmando uma concepção de sujeito em que pese a
diversidade dos ambientes sociais. Os comportamentos expressos pelos indivíduos
invariavelmente serviam para justificar as interpretações denominadas
“científicas”, restando pouco ou quase nada a fazer por parte daqueles que
manifestavam tais condutas. Baseados no princípio de “normalidade” e estrutura
psíquica invariante, aplicado a todos indistintamente, os psicólogos
mostravam-se despreocupados em investigar o comportamento dos homens. O
comportamento, em si, configurava-se como recurso para alimentar os princípios
constitutivos da personalidade normal ou patológica. A história social e
singular do indivíduo participava apenas como pano de fundo para a expressão
dos comportamentos “sabidamente” conhecidos.
Dissonante
dessa perspectiva, e preocupados em considerar o homem enquanto sujeito social,
inserido num contexto sócio-histórico, os psicólogos sociais adotaram o termo
identidade.
De
acordo com Ciampa (1984), é comum, em nosso cotidiano, a seguinte
pergunta: quem é você ? Tal questionamento invariavelmente remete à identidade.
O
emprego popular de tal termo apresenta-se marcado por uma intensa diversidade
conceptual, sugerindo que a ostentação de um nome tão definitivo, continua
sujeito a inúmeras variações (Jacques, 1998, p.159).
Essa
imprecisão conceptual não se restringe ao universo da vida cotidiana, mas
reflete a dificuldade nos mais variados campos do conhecimento que têm se
dedicado a essa temática, como a Antropologia, Filosofia, Sociologia e
Psicologia.
“A
importância conferida ao estudo da identidade foi variável ao longo da
trajetória do conhecimento humano, acompanhando a relevância atribuída à
individualidade e às expressões do eu nos diferentes períodos históricos”
(Jacques, 1998, p.159). Há momentos na história em que se verifica um
maior interesse sobre a questão da identidade, como registrado na antigüidade
clássica, em que predominava uma valorização da vida individual e do mundo
interno. Em contrapartida, constata-se um declínio acentuado no feudalismo
devido à influência da concepção cristã de homem e do corporativismo feudal,
fazendo com que historiadores remetam o aparecimento da
individualidade aos séculos XI, XII e XIII. Foi na época do movimento
romântico que o egocentrismo e a introspecção atingiram o seu apogeu,
fornecendo condições para que se propagassem as produções teóricas sobre a
identidade, inclusive no âmbito psicológico.
Na
visão psicológica, os estudos sobre identidade são tratados geralmente pela
Psicologia Analítica do Eu e pela Psicologia Cognitiva (Jacques,1998), que em
comum compartilham a noção de desenvolvimento, marcado por estágios crescentes
de autonomia, entendendo a identidade como produto da socialização e garantida
pela individualização. Ainda segundo aquele autor, a questão da identidade em
Psicologia Social ocupou lugar central nos estudos de William James , enquanto
que, na tradição do Interacionismo Simbólico, as referências concentram-se nos
trabalhos de George Mead.
As
dificuldades apontadas nesse percurso, que respondiam por uma excessiva ênfase,
ora no individual, ora no social, são também encontradas na atualidade sob
formas diferentes, embora na “essência” ainda carreguem o problema de origem,
referente à demarcação do território limítrofe do social e do individual. Tal
afirmação pode ser ilustrada pelo uso de predicativos diversos para qualificar
os diferentes sistemas identificatórios que constituem a identidade:
Jurandir
Freire Costa emprega a qualificação "identidade psicológica" para se
referir a um predicado universal e genérico definidor por excelência do humano
em contraposição a apenas um atributo do eu ou de algum eu como é a identidade
social, étnica ou religiosa, por exemplo. Habermas (1990) refere-se
a “identidade do eu “ que se constitui com base na "identidade
natural" e na "identidade de papel" a partir da integração
dessas através da igualdade com os outros e da diferença em relação aos outros.
Com base no pressuposto inter-relacional entre as instâncias individual e
social, a expressão "identidade social" vem sendo empregada.
(Neto,1985) buscando dar conta dessa articulação. (Jacques, 1998, p.161).
Instala-se,
então, uma dicotomia em que “a identidade passa a ser qualificada como identidade
pessoal (atributos específicos do indivíduo) e/ou identidade social (atributos
que assinalam a pertença a grupos ou categorias).” (Jacques,1998, p. 161).
Diante
dessa diversidade de qualificações e predicativos atribuídos à identidade,
destaca-se o termo identidade social, uma vez que os elementos que o
compõem parecem apontar, de forma mais evidente, as duas instâncias
- individual e social - em jogo na discussão da problemática conceptual, que
trata da origem individual ou coletiva da identidade. Com isso é possível fazer
algumas reflexões sobre a concepção de homem subjacente à interpretação do
termo, a fim de superar a falsa dicotomia (individual e social), bem como
mostrar que é na articulação destas que é tecida a identidade.
Os
termos identidade e social sugerem, respectivamente, um
conceito que "explique por exemplo o sentimento pessoal e a
consciência da posse de um eu..." (Brandão, 1990 p.37) privilegiando,
de um lado, o indivíduo, e de outro lado, a coletividade, resultando numa
configuração na qual se capta o homem inserido na sociedade, bem como à
dinâmica das relações sociais. A importância dessa relação pode ser melhor
compreendida nessa citação de Marx (1978a, p.9) “ A sociedade é, pois,
a plena unidade essencial do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da
natureza, o naturalismo acabado do homem e o humanismo acabado da natureza”.
A
cisão encontrada nos textos de diferentes autores pode levar a um entendimento
do homem como sendo dois; coexistindo independentemente e/ou separadamente
um "eu" e um homem que se relaciona com outros homens.
Pode-se
dizer que a concepção de homem que norteia tal rompimento vincula-se à idéia de
natureza humana, cujos pressupostos pregam que todas as potencialidades do
indivíduo já nascem com ele, sendo função do ambiente social promover
condições para a manifestação dessas habilidades já pré-determinadas.
O contexto social ocupa, assim, um papel secundário, configurando-se apenas
como o contato com outros homens. Isso se reflete, de acordo com Bock (1997)
nas perspectivas naturalista, essencialista e maturacionista que colocam no
indivíduo a origem das funções psíquicas encontradas no substrato biológico.
É
necessário compreender qual visão de homem orienta o estudo dessa categoria de
análise - a identidade social, por constituir-se numa lente que regerá todo o
processo de pensamento e construção do conhecimento desse fenômeno psicológico.
A
identidade é considerada uma categoria de análise, ou seja, constitui-se em um
elemento que é utilizado como referencial para submeter um objeto a uma
análise; um recurso teórico que vai subsidiar a compreensão de um dado
fenômeno; mediação para a compreensão de um determinado objeto.
Desprovidos
da idéia de natureza humana, e assumindo uma concepção de homem como ser
sócio-histórico, as condições biológicas recebem um outro enfoque. De acordo
com Bock (1997) estas condições são a sustentação de um desenvolvimento
sócio-histórico, o que é endossado nas palavras de Sève:
Assim
o homem se constitui, a partir de um suporte biológico que lhe dá condições
gerais de possibilidades (próprias da espécie Homo Sapiens Sapiens) e condições
particulares de realidade (próprias de sua carga genética). No entanto, as
características humanas historicamente desenvolvidas se encontram objetivadas
na forma de relações sociais que cada indivíduo encontra como dado existente,
como formas históricas de individualidade, e que são apropriadas no desenrolar
de sua existência através da mediação do outro.(Sève, apud Jacques, 1998, p.
162)
Logo,
a identidade não é inata e pode ser entendida como uma forma sócio-histórica de
individualidade. O contexto social fornece as condições para os mais variados
modos e alternativas de identidade. O termo identidade pode, então, ser
utilizado para expressar, de certa forma, uma singularidade construída na
relação com outros homens.
Os
acontecimentos da vida de cada pessoa geram sobre ela a formação de uma lenta
imagem de si mesma, uma viva imagem que aos poucos se constrói ao longo de
experiências de trocas com outros: a mãe, os pais, a família, a parentela, os
amigos de infância e as sucessivas ampliações de outros círculos de outros:
outros sujeitos investidos de seus sentimentos, outras pessoas investidas de
seus nomes, posições e regras sociais de atuação (Brandão, 1990, p. 37).
É
importante, segundo Jacques (1998), não limitar o conceito de
identidade ao de autoconsciência ou auto-imagem. A identidade é o ponto de
referência, a partir do qual surge o conceito de si e a imagem de si, de
caráter mais restrito. Seria mais sensato dizer que essa singularidade, o
reconhecimento pessoal dessa exclusividade, não é construída, mas vai sendo construída,
a fim de abandonar a noção de imutabilidade. A identidade não se apresenta sob
a forma de uma entidade que rege o comportamento das pessoas, mas é o próprio
comportamento, é ação, é verbo.
A
identidade constitui-se de uma multiplicidade de papéis. Na execução de um
papel social, como o de pai, por exemplo, está "introjetado" neste
pai a dimensão social em sua totalidade, desde a formação da palavra pai e sua
suposta função, bem como a dimensão individual, que por sua vez se constitui no
social.
Não
há uma separação, mas sim uma articulação, em que os limites, se é que
realmente existem, entre o social e o individual se confundem. Para existir um,
são necessários dois, não apenas do ponto de vista da concepção, da
genética, da sobrevivência, mas sobretudo em se tratando do homem ser
reconhecido como tal; o homem só se vê como homem se os outros assim o reconhecerem.
Sob essa perspectiva, é possível conceber a identidade pessoal como, e ao mesmo
tempo, social, superando a falsa dicotomia entre essas duas instâncias.
Para
que a questão da identidade seja melhor esclarecida, torna-se necessário partir
da análise de algumas especificidades que a constituem. Ciampa (1984) há
muito tem se dedicado ao estudo da identidade, norteado por uma concepção
sócio-histórica de homem. Para ele, a compreensão da identidade exige que se
tome como ponto de partida a representação de identidade como um produto, para
então analisar seu próprio processo de construção. Por exemplo, a resposta à
pergunta “quem sou eu ?” seria insatisfatória para a configuração de uma
concepção sobre identidade, uma vez que capta somente o aspecto representacional
da noção de identidade (enquanto produto), deixando de lado seus aspectos
constitutivos de produção.
Contrapondo-se
à idéia de natureza humana, Marx (1978b) em “Para a Crítica da Economia
Política” busca compreender os “indivíduos produzindo em sociedade,
portanto a produção dos indivíduos determinada socialmente, é por certo o ponto
de partida” (p.103). Todo esforço em compreender o homem, recorrendo à
História, só tende a confirmar a dependência deste ao conjunto das relações nas
quais está envolvido. Por isso, a afirmação de Marx (1978b) “O homem é no
sentido mais literal, um zoon politikon, não só animal social, mas animal que
só pode isolar-se em sociedade”. (p.104).
A
totalidade da realidade social é um princípio fundamental para captar o movimento
do homem no mundo. Assim, quando se fala de produção humana deve-se situá-la
como “[...] apropriação da natureza pelo indivíduo, no interior e por meio
de uma determinada sociedade” (Marx, 1978b, p.106).Uma totalidade, portanto,
que se materializa num tempo histórico social, totalidade concreta.Quando trata
do processo de produção, Marx demonstra como o princípio da totalidade se
expressa:
O
consumo cria o impulso da produção; cria também o objeto que atua na produção
como determinante da finalidade...o consumo põe idealmente o objeto da
produção, como imagem interior, como necessidade, como impulso e como fim. Sem
necessidade não há produção. Mas o consumo reproduz a necessidade’ (Marx,
1978b, p. 110).
Momentos
diferentes de um único processo, as etapas que configuram o modo de produção é
que “não é que a produção, a distribuição, o intercâmbio, o consumo são
idênticos, mas que todos são elementos de uma totalidade, diferenças dentro de
uma unidade” (Marx, 1978b, p. 115).
O
significado de uma totalidade concreta é buscado pelo método científico, em que “o
concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade
do diverso” (Marx,1978b, p. 116).
Essa
diversidade para ser captada e compreendida necessita percorrer um trajeto, cujo
início está na concepção de história.
A
transformação é resultado da ação do homem e do mundo natural sobre os objetos.
Ao produzir, o homem consome parte de suas forças vitais, bem como consome os
meios empregados para a produção de um determinado produto.
O
homem, no entanto, não é apenas ser natural, mas ser natural humano, isto
é , um ser que é para si próprio e, por isso, ser genérico, que enquanto tal
deve atuar e conformar-se tanto em seu ser como em seu saber... nem objetiva
nem subjetivamente está a natureza imediatamente presente ao ser humano de modo
adequado. E como tudo o que é natural deve nascer,assim também o homem
possui seu ato de nascimento: a história, que, no entanto, é para ele uma
história consciente, e que, portanto, como ato de nascimento acompanhado de
consciência é ato de nascimento que se supera. A história é a
verdadeira história natural do homem . (Marx, 1978a, p.41 - grifos do autor)
Embora
o método dialético, na concepção de Marx (1978b), não apresente leis, tais como
as expostas por Gadotti (1983), e procure enfatizar a diferença entre método de
exposição e método de pesquisa, é importante assinalar que sua exposição
persegue a lei da transformação, buscando “[... o nascimento, a
existência, o desenvolvimento, a morte de determinado organismo social, e sua
substituição por outro de mais alto nível]”.(p.16).
Para
melhor compreender a identidade enquanto processo, cujo movimento é o aspecto
central, recorrer-se-á às “leis” da dialética apresentadas por Gadotti (1983).
Isso consiste mais num esforço didático que auxilia na compreensão da
subjetividade enquanto totalidade que expressa a diversidade, síntese de
múltiplas determinações.
O
processo de construção da identidade, bem como seus elementos constituintes,
tem um caráter dialético, e dentro dessa perspectiva é interessante destacar os
princípios ou “leis” da dialética, para um melhor entendimento da noção de
identidade, não só em seu aspecto representacional mas também operativo.
De
acordo com Gadotti (1983), as quatro "leis" da dialética compreendem:
1) tudo
se relaciona;
2) tudo
se transforma;
3) mudança
qualitativa;
4) unidade
e luta dos contrários.
1)
Tudo se relaciona (princípio da totalidade)
Segundo
a dialética, a natureza é um todo coerente constituído por objetos e
fenômenos, que estão ligados entre si, relacionando-se de forma
recíproca.
A
compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se encontram
em relação de interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que
o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto
que o todo se cria a si mesmo na interação das partes. ”A parte materializa o
todo mas o todo não é a soma das partes, nem é a parte o todo. Busca-se
entender os fenômenos e os objetos dentro de uma totalidade concreta pois “Nada
é isolado. Isolar um fato, fenômeno e depois conservá-lo pelo entendimento
neste isolamento, é privá-lo de sentido, de explicação, de conteúdo. É
imobilizá-lo artificialmente, matá-lo. É transformar a natureza – através do
entendimento metafísico – num acúmulo de objetos exteriores uns aos outros, num
caos de fenômenos. (Henri Lefèbvre, apud Gadotti, 1983, p. 25) .
A
identidade é totalidade, e uma de suas características é a multiplicidade. Os
papéis sociais são impostos ao indivíduo, desde o seu nascimento e assumidos
pelo mesmo na medida em que se comporta de acordo com a expectativa da
sociedade. Por exemplo: na presença do filho, o homem se relaciona como pai; na
presença de seu pai, comporta-se como filho. Se for também professor do filho,
o pai será pai/professor e aquele será filho/aluno. O papel de pai, bem como o
de filho, materializa a identidade como totalidade/parcialidade, pois sendo
expressão de uma parte, não revela a identidade por inteiro. A cada personagem
materializado, a identidade tem assegurada sua manifestação enquanto
totalidade, mas uma totalidade que não se esgota nem tampouco se resume a concretização
de personagens. As personagens são partes constitutivas da identidade e, ao
mesmo tempo, configura-se como um todo que se cria a si mesmo, enquanto
fenômeno de uma totalidade concreta. A identidade é ainda um universo de
personagens já existentes e de outros ainda possíveis.
Desta
forma, na relação com outros homens, o indivíduo não comparece apenas como
portador de um único papel, pois diversas combinações configuram uma identidade
como totalidade. Uma totalidade contraditória, múltipla e mutável, no entanto
una. Ao se apresentar frente a uma determinada pessoa, comporta-se
de uma dada maneira, neste momento as “outras identidades” pressupostas estão
ocultadas.
A
identidade é vista como totalidade não apenas no sentido da multiplicidade dos
personagens, mas também no que se refere ao conjunto de elementos biológicos,
psicológicos e sociais que a constitui .
Não
podemos isolar de um lado todo um conjunto de elementos – biológicos,
psicológicos, sociais, etc. – que podem caracterizar um indivíduo,
identificando-o, e de outro lado a representação desse indivíduo como uma
duplicação mental ou simbólica, que expressaria a sua identidade. Isso porque
há como uma interpenetração desses dois aspectos, de tal forma que a
individualidade dada já pressupõe um processo anterior de representação que faz
parte da constituição do indivíduo representado. (Ciampa, 1984, p. 65).
2)
Tudo se transforma (princípio do movimento)
Para
a dialética o movimento é uma característica inerente a todas as coisas e estas
necessitam ser consideradas em seu devir. A natureza e a sociedade não são
vistas como algo pronto e acabado, mas como elementos que estão em constante
transformação. E a causa dessa transformação é a luta interna, a luta entre os
elementos contraditórios que coexistem numa totalidade estruturada. É a lei da
negação da negação, como aponta Konder (apud Gadotti, 1983, p.
25). Essa “lei”
...dá
conta do fato de que o movimento geral da realidade faz sentido, quer dizer,
não é absurdo, não se esgota em contradições irracionais, ininteligíveis, nem
sempre se perde na eterna repetição do conflito entre teses e antíteses, entre
afirmações e negações. A afirmação engendra necessariamente a sua negação,
porém, a negação não prevalece como tal: tanto a afirmação como a negação são
superadas e o que acaba por prevalecer é uma síntese, é a negação da negação.
Assim
como foi dito que o movimento é uma característica inerente a todas as coisas,
a identidade aí se inclui. “Identidade é movimento, é desenvolvimento do concreto...
é metamorfose.” (Ciampa, 1987 p. 74). Logo, ao invés de se perguntar como a
identidade é construída, seria mais sensato questionar como vai sendo construída. Seria
mais correto abordá-la enquanto processo de identificação, e não apenas enquanto
produto.
O
autor citado parte do princípio de que o ser humano é matéria, e como matéria
está em constante transformação. É essa materialidade que permite ao homem
expressar a condição da plasticidade, entendida como capacidade de projetar
mundos, ou seja, o devir da identidade na forma de personagens possíveis
(sonhos, projetos, esperanças). Em função dessa plasticidade, o homem pode
negar o seu passado no futuro mediante condições objetivamente dadas. O
indivíduo pode negar aquilo que lhe negam (lei da negação da negação), criando
condições objetivas para se transformar. Isso se dá mediante
exercício de reflexão, é como diz Lane:
Apenas
quando confrontamos as nossas representações sociais com as nossas experiências
e ações, e com as de outros do nosso grupo social, é que seremos capazes de
perceber o que é ideológico em nossas representações e ações conseqüentes, ou
seja, pensar a realidade e os significados atribuídos a ela, questionando-os de
forma a desenvolver ações diferenciadas, isto é, novas formas de agir, que por
sua vez serão objeto do nosso pensar, é que nos permitirá desenvolver a
consciência de nós mesmos, de nosso grupo social e de nossa classe como
produtos históricos de nossa sociedade, e também cabendo a nós – agentes de
nossa história pessoal e social – decidir se mantemos ou transformamos a nossa
sociedade (Lane, 1983, p. 36-37).
É
no nascimento que a plasticidade, ou possibilidades, apresentam-se em sua
plenitude, pois ao nascer, a criança encontra um mundo já constituído e sobre ela
lançam-se as expectativas da sociedade. O homem, enquanto ser ativo,
apropria-se da realidade social, atribuindo um sentido pessoal às significações
sociais. Dadas as condições objetivas, as expectativas da sociedade, bem como
as expectativas internalizadas pelo próprio homem, a identidade vai sendo
construída num constante processo de vir a ser. Um pequeno trecho da obra de
Ciampa (1987), em que o autor utiliza-se da história de Severino - personagem
ficcional do poema de João Cabral de Mello Neto – “Morte e Vida Severina” é
destacada a cena de um nascimento:
Será
este recém-nascido tão diferente dos Severinos homogêneos e homônimos que vimos
encerrados na sua mesmice? Na verdade, é um ser do mesmo gênero que, inclusive,
também pode vir a ser mais um Severino, como possibilidade – não como
necessidade. O que caracteriza é a plasticidade; define-se pelo vir-a-ser”.
Isso revela a vida ... “ o humano é vir-a-ser humano – identidade humana é
vida! (Ciampa, 1987, p.36).
Neste
fragmento fica caracterizado o mundo simbólico, marca do homem. É essa
subjetividade constituída por um universo de significados que transforma o
"ser" em humano. O homem não cria apenas o mundo; cria sentido para o
mundo em que vive. Traça caminhos, muda sua rota, altera sua
"pré-destinação" pelas ações que realiza junto com outros homens. Por
isso, deve ser visto como "se fazendo" e não "feito" e
"acabado".
3)
Mudança qualitativa (princípio da mudança qualitativa)
Esse
princípio revela que a “transformação das coisas não se realiza num
processo circular de eterna repetição, uma repetição do velho. Como é gerado o
novo ? Esta mudança qualitativa se dá pelo acúmulo de elementos quantitativos
que num dado momento produzem qualitativamente o novo.” (Gadotti, 1983 p. 26).
Como
já salientado anteriormente, não basta apenas o aspecto representacional,
mas deve-se considerar também o aspecto operativo da identidade. “O
nascituro, uma vez nascido, constituir-se-á como filho na medida em que as
relações nas quais esteja envolvido concretamente confirmem essa representação
através de comportamentos que reforcem sua conduta como filho e assim por
diante” (Ciampa, 1984, p. 66). Logo, não é suficiente uma
representação prévia, essa identidade pressuposta, para ser mantida tem que ser
"re-posta" a cada momento, mostrando seu caráter dinâmico. Contudo, a
identidade sendo metamorfose aparece como não metamorfose, pelo trabalho de
"re-posição".
Esse
processo de re-posição muitas vezes confunde a questão do “movimento” da
identidade. A re-posição é vista como algo dado e não como um se dando, num
contínuo processo de identificação, devido ao fato de que as diferenças, a cada
re-posição muitas vezes são pouco perceptíveis. A personagem pode ser a mesma:
aluno, mas não o mesmo aluno. Como a sucessão é rápida, às vezes as mudanças
não são reconhecidas. Mudanças pequenas dão a impressão de não-movimento,
necessitam de um acúmulo de quantidade para que a percepção capte as
transformações ocorridas. A cada dia, novos acontecimentos e significados são
acrescidos à vida cotidiana, tornando o homem e o mundo
"qualitativamente" diferentes. Quando a mudança é mais visível,
diz-se que esta ocorreu “de repente”, mas na verdade não existe “de
repente”, e sim um acúmulo de elementos até o momento em que algo se
torna distinto na forma como era percebido. A identidade é uma
sucessão temporal com mudanças muito pequenas. Na relação do indivíduo com
outros homens “as identidades” vão sendo re-postas e cada re-posição não é a
mesma, as condições objetivas são outras, outros significados vão sendo dados e
internalizados mesmo que imperceptíveis, pois como matéria estamos em constante
transformação. Esta plasticidade permite ao homem a construção da sua
singularidade, da sua identidade e de seu vir-a-ser.
4)
Unidade e luta dos contrários (princípio da contradição)
Essa
“lei” propõe que o movimento das coisas e suas transformações se dão porque no
interior destas coexistem forças opostas que tendem simultaneamente
à unidade e à oposição. Essa contradição, de caráter universal, é
inerente a todas as coisas materiais e espirituais.
A
identidade é construída por elementos opostos, ela é diferença e igualdade;
objetividade e subjetividade, ocultação e revelação, humanização e
desumanização, mesmice e mesmidade, e, para compreendê-la, é necessário
articular essas dimensões aparentemente contraditórias a fim de superar a
dicotomia individual/social que constitui a problemática da identidade desde a
origem do termo.
Identidade
é ao mesmo tempo diferença e igualdade . De acordo com Jacques (1998), a
palavra identidade evoca tanto a qualidade do que é idêntico, igual, como a
noção de um conjunto de caracteres que fazem reconhecer um indivíduo como
diferente dos demais. Assim, a identidade implica tanto no reconhecimento de
que um indivíduo é o próprio de quem se trata, como também pertence a um todo,
confundindo-se com outros, seus iguais. Para subsidiar tal afirmação, é
interessante retomar a história de Severino, este personagem que na busca de
sua singularidade (diferença), acentuava cada vez mais sua igualdade. Severino,
tentando dizer quem é, recorre a um substantivo (palavra que nomeia o ser) para
indicar sua identidade, porém não é suficiente para que a sua identidade seja
reconhecida. Em uma segunda tentativa, recorre a outros substantivos próprios
como nome da mãe, do pai, definindo com isso a sua posição social – família
determinada; procura então uma região geográfica, depois, acrescenta a
descrição de seu corpo físico, mas nada o singularizava, até a morte e a vida
eram iguais... na busca da diferença encontrava igualdade.
Para
muitos, a identidade se confunde com o nome e, nele estão a diferença (pré-nome)
e igualdade (sobrenome). O processo de identificação começa no grupo social. O
primeiro grupo social é a família na qual as duas dimensões da identidade
começam a se constituir – igualdade (sobrenome) e diferença (pré-nome).
O
nome não é a identidade; enquanto substantivo não revela a identidade, mas
apenas parte dela. O substantivo é algo que nomeia o ser, e para isso é
necessário uma atividade: o nomear. Logo, a identidade não é substantivo, é
verbo; identidade é atividade (Ciampa, 1984).
A
igualdade é expressa na história social compartilhada pela família, grupo
social, localização geográfica, condições econômicas, culturais.... A diferença
pode ser entendida como a constituição da singularidade, a transformação da
significação social em sentido pessoal; e isso se dá pela atividade, através da
concretização de personagens. É nesse processo de externalização (atividade
humana) que a sociedade chega a se constituir como produto humano.
A
singularidade (diferença) está na negação da negação, ou a negação de algo que
nos é negado. A identidade singular é tecida na identidade social. Um momento
da negação se expressa quando um indivíduo conquista seu reconhecimento,
passando do indefinido e genérico, para o definido e singular. Distingue-se dos
demais com quem compartilha o mundo social. As características
peculiares, que dizem respeito à maneira de cada um se relacionar com os
outros, foram aprendidas nas relações grupais. A história de vida do indivíduo
é determinada pelas condições históricas do grupo social no qual está inserido.
Os papéis sociais que o homem aprende a desempenhar foram definidos
pela sociedade, e de acordo com Lane (1983), foram engendrados visando garantir
a manutenção das relações sociais, para que as relações de produção da vida se
reproduzam sem grandes alterações na sociedade em que o homem vive. Há casos em
que a identidade singular está tão colada à identidade social que se confunde
com aquela. Há uma reprodução da ideologia dominante do conjunto de
seus significados ao nível individual. Porém, ao refletir sobre as contradições
entre as representações e suas atividades desempenhadas na produção da vida
material, o homem faz com que as ações subsequentes resultem num avanço no
processo de conscientização. Para Lane (1983), apenas quando o ser humano for
capaz de encontrar as razões históricas da sociedade e do grupo social, que
explicam porque o homem age desta forma e como o faz, é que ele estará
desenvolvendo a consciência de si mesmo. A diferença é essencial para a tomada
de consciência de si e é inerente à própria condição da vida social, pois a
diferença só aparece tomando como referência o outro. “Não é a consciência
dos homens que determina o seu ser, mas o contrário, é o seu ser social que
determina sua consciência.” (Marx & Engels ,1979 p.37).
Lane
(1983) ressalta ainda que a consciência de si poderá alterar a identidade
social, na medida em que dentro dos grupos que definem o homem, este questione
os papéis quanto as suas funções históricas, ao mesmo tempo em que os
membros se identifiquem entre si quanto a esta determinação e constatem as
relações de dominação que reproduzem uns sobre os outros. Somente desta maneira
é que o grupo poderá se tornar agente de mudanças sociais. Segundo Berger
(1971), enquanto esse questionamento, por assim dizer, se limitar à consciência
individual e não for admitido por outros, ao menos como possibilidade empírica,
terá apenas uma existência “fantasmagórica”.
O
fenômeno da consciência é, ao mesmo tempo, extremamente subjetivo, porque está
muito carregado pela presença efetiva do eu individual, e extremamente
objetivo, porque se esforça por considerar objetivamente não só o ambiente
exterior (o mundo), mas também o eu subjectivo.(...) o eu considera-se
simultaneamente como sujeito e como objecto de conhecimento e considera o
ambiente objectivo implicando neste a sua própria existência subjectiva”.
(Morin, 1973, p.132).
Neste
processo de externalização, o homem constrói seu mundo e ao mesmo tempo
constrói a si mesmo e essa atividade construtora de mundos dos homens é o
trabalho, trabalho enquanto atividade consciente do homem.
A
atividade sempre está vinculada à consciência. E é mediante esse exercício de
reflexão que o homem pode criar condições objetivas e superar as situações do
cotidiano, concretizando outras personagens. Nessa concretização, a atividade é
que configura a singularidade. O homem na sua atividade se distingue das outras
espécies animais, já que sua atividade é consciente e sua produção não é
determinada unicamente por suas necessidades imediatas.
(...)
É certo afirmar que também o animal produz (...) Porém produz unicamente o que
necessita de imediato para si ou para sua prole; produz unilateralmente,
enquanto que o homem produz universalmente. O animal produz unicamente por mandato
da necessidade física imediata, enquanto que o homem produz inclusive livre
da necessidade física e só produz realmente liberado dela; o animal
produz apenas a si mesmo, enquanto que o homem reproduz a natureza inteira; o
produto do animal pertence imediatamente com seu corpo físico, enquanto que o
homem se defronta livremente com seu produto. O animal produz unicamente
segundo a necessidade e a medida da espécie a que pertence, enquanto que o
homem sabe produzir segundo a medida de qualquer espécie e sempre sabe impor ao
objeto a medida que lhe é inerente, por isso o homem cria segundo as leis da
beleza . (Marx, 1983, p.112).
De
acordo com Marx (1978a), a base da sociedade, assim como a característica
fundamental do homem está no trabalho, atividade pela qual o homem domina as
forças naturais, humaniza a natureza, e ao mesmo tempo cria a si mesmo. A
respeito da relação homem-natureza, Marx afirma que o homem faz parte da
natureza mas não se confunde com ela. O homem é um ser natural, no sentido de que
foi criado pela própria natureza, submete-se às leis que são naturais e depende
desta natureza para sobreviver. Mas ao mesmo tempo, o homem não se confunde com
a natureza, pois a transforma de modo consciente segundo suas necessidades e,
nesse processo, se faz homem. É nesta relação que o homem se constrói e
transforma a si mesmo e a própria natureza. Marx ressalta ainda que o homem só
é capaz de transformar a natureza e a si mesmo porque se reconhece e reconhece
o outro nesse processo. A natureza humanizada não é, portanto, construída
através de idéias ou resultado de uma abstração, mas atividade prática e
consciente: a natureza humanizada é trabalho.
O
que o indivíduo concretiza, vive, aquilo que tem sido e vivido corresponde à
objetividade da identidade. A subjetividade da identidade está no
"vir-a-ser" na forma de personagens possíveis, está na plasticidade.
O homem pode projetar um "vir-a-ser" baseado nas experiências
passadas, se de alguma forma, o sentido dessas pretende preservar, e
nesse processo procura criar condições objetivas que garantam a possibilidade
de recriar no futuro, essas experiências; caso contrário pode criar novas
condições para sua negação, conquistando assim, a superação. A superação
pressupõe a concretização, isto é, só se pode superar aquilo que já foi
concretizado, externalizado e, como foi dito, isso se dá pela atividade
mediante o exercício de reflexão.
A
identidade também é ocultação e revelação. A revelação é condição para a
ocultação. Perante determinadas condições objetivas é revelada a uma dada
pessoa uma personagem e ocultadas outras.
A
identidade é também desumanização no sentido da impossibilidade de novas
concretizações. O indivíduo desenvolve atividades que o negam como ser humano
ou é forçado a repor personagens reproduzindo as condições que o desumaniza.
Nesse movimento, o homem não se reconhece no produto de sua atividade, e isto
se dá, segundo Marx (1983), pois o homem se relaciona com o produto de seu
trabalho como um objeto alienado, “[...] a apropriação do objeto aparece
como alienação a tal ponto que quanto mais objetos o trabalhador produz tanto
menos pode possuir e tanto mais fica dominado pelo seu produto, o capital”
(Marx, 1983, p. 91). O homem ao transformar a natureza transforma a si
mesmo e nesta relação, produz-se como homem alienado, produzindo as condições
de sua própria escravização:
Quanto
mais o trabalhador produz, tanto menos tem pra consumir; quanto mais valor ele
cria, tanto menos valioso se torna; quanto mais aperfeiçoado o seu produto,
tanto mais grosseiro e informe o trabalhador; quanto mais civilizado o produto,
tão mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tão mais
frágil o trabalhador; quanto mais inteligência revela o trabalho, tanto mais o
trabalhador decai em inteligência e se torna um escravo da natureza. (Marx,
1983, p. 92).
Neste
sentido, o indivíduo reproduz a ideologia dominante, mantendo as condições
sociais, ou seja, não transforma nem as relações sociais, nem a ele mesmo.
Enquanto humanização, o homem insere-se e define-se no conjunto de suas
relações sociais, desempenhando atividades transformadoras destas relações, o
trabalho apresenta-se como “[...] atividade vital, vida produtiva”
(Marx,1983 p. 95) e não “...apenas como meios para a satisfação
de uma necessidade, a de manter sua existência física” (Marx,1983, p. 95).
Nessa
articulação entre atividade e consciência define-se a mesmidade (Ciampa, 1987).
Este elemento caracteriza também a identidade enquanto movimento e plasticidade,
pois se dá pelo ato de refletir o que temos sido e podemos ser.
Trata-se de uma postura do homem em dispor-se a saber mais, de refletir o
conhecimento, recusando-se a reconhecê-lo como realidade absoluta. Em
contrapartida, se dá a mesmice que pode ser descrita como simples
re-posição de papéis, sem a mediação da reflexão.
Dentro
dessa perspectiva é conveniente ressaltar que a identidade é um fenômeno
social, logo não é possível dissociar o estudo da identidade singular, do
estudo da sociedade. É do contexto histórico e social em que o homem vive que
decorrem suas determinações e, consequentemente, emergem as possibilidades ou
impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade.
“Somos
personagens de uma história que nós mesmos criamos, fazendo-nos autores e
personagens ao mesmo tempo”. Esta frase de Ciampa (1987) pode ser comparada a citada
por Berger (1971): o homem é produto da sociedade, a sociedade é produto do
homem.
A
personagem se refere à identidade empírica que é a forma pela qual a identidade
se expressa no mundo. Implica sempre na presença de um ator desempenhando um
papel social. A personagem ao mesmo tempo se confunde e se diferencia do papel,
isto porque o homem não ‘absorve’ passivamente o mundo social (com suas
instituições, papéis, e identidades apropriadas), mas apropria-se dele de
maneira ativa – somos também autores da nossa história ; a sociedade é produto
do homem. O mundo objetivo é apreendido com plena significação subjetiva,
atribuindo-lhes sentidos à realidade objetiva. É no desenvolvimento de
atividades que o homem vai construindo sua história. A personagem está sempre
relacionada a um papel social, e este representa uma identidade coletiva,
abstrata e genérica; associada, construída e mediada pelas relações sociais.
Nesse sentido, os homens são ao mesmo tempo autores e co-autores,
pois precisam do outro para se concretizar. A reposição de
personagens só é possível porque o outro oferece condições para isso. O outro é
condição fundamental de expressão da identidade enquanto
singularidade. É diante do outro que o homem pode negar aquilo que lhe negam. O
homem tem que reconhecer a si mesmo e o outro no processo de construção da
identidade, “[...] quando o homem se defronta consigo mesmo, também está
se defrontando com outros homens” (Marx, 1983, p. 97 –
grifo do autor).
A
questão da identidade é complexa, uma vez que é múltipla, dinâmica, num
constante devir. É uma intrincada rede de representações, em que cada
personagem reflete tantos outros, todos constitutivos da identidade,
ou melhor dizendo, instituintes de um processo identitário, desaparecendo,
assim, qualquer possibilidade de se estabelecer um fundamento
originário para cada uma delas. O mesmo ocorre com a questão da relação
homem-sociedade cuja complexidade é expressa por Allport (apud Ciampa, 1993,
p.3) no seguinte questionamento:
Como
pode sua natureza (do indivíduo) depender indubitavelmente da prévia existência
de padrões culturais e de seus papéis numa estrutura social pré-determinada,
enquanto que ao mesmo tempo ele é claramente uma pessoa única, selecionando e
rejeitando influências de seu meio cultural e, por outro lado, criando novas
formas culturais para orientar as futuras gerações ? E ainda mesmo enquanto
essa interação entre o individual e o social está em evolução, o homem também
é, certamente, um ser biológico, sujeito às leis de sua espécie .
A
exposição feita até aqui pretendeu demarcar o espaço e as múltiplas facetas que
envolvem a temática de identidade, além de explicitar a importância do adjetivo social que
segue o substantivoidentidade.
QUESTÕES
CONTEXTUAIS
A
complexidade desse tema tem sido responsável por discussões extensas e muitas
vezes estéreis em razão de princípios e conceitos divergentes envolvidos. A
fase denominada de capitalismo desorganizado (Santos, 1999), para
circunscrever o momento atual do mundo globalizado, responde por novas
configurações do homem, expondo perspectivas que devem ser objeto de
investigação dos cientistas sociais. Inúmeras são as questões que se colocam
hoje. Marcado por pressões de um mundo cada vez mais complexo e desorganizado,
a natureza dos problemas humanos se redimensiona, obrigando todos a
um investimento pessoal, por vezes demasiado pesado. Perdido e premido por
exigências do mundo, onde a divisão entre público e privado manifesta-se com
doses generosas de ambigüidade, a identidade do homem transforma-se
rapidamente, sem que a ciência e o universo consensual possam dar conta dessas
mudanças. O conhecimento científico retrata uma provisoriedade sem precedentes,
em que pese todas as revoluções científicas e tecnológicas desse final de milênio.
A
pergunta que se coloca agora é: Quem é o homem da contemporaneidade? O que faz
esse homem? Como dar conta desse fenômeno psicológico? Qualquer tentativa de
esgotar esses temas seria pretensiosa e frágil, posto que teria que lidar com
uma plasticidade ainda não totalmente conhecida. A impessoalidade tal como
discute Sennett (1988), transformou-se num risco que poucos estão dispostos a
correr. A apologia da intimidade cristaliza os mundos público e privado,
tornando-os impermeáveis.
Identificar-se
com pessoas que não se conhece, pessoas estranhas, mas que podemos compartilhar
dos interesses étnicos, dos problemas familiares, ou da religião, tornou-se
algo penoso... Quanto mais local a imaginação, maior se torna o número de
interesses e problemas sociais, para os quais a lógica psicológica é: não nos
deixaremos envolver; não permitiremos que isso nos violente. Não se trata de
indiferença: é uma recusa, uma constrição voluntária de experiências que o eu
comum pode se permitir. (Sennett, 1988, p. 378).
Sennett
(1988) denuncia uma realidade ao revelar a preocupação com situações que
circunscrevem a vida cotidiana. Censura o comportamento dos homens preocupados
em investir em si mesmos, estabelecendo vínculos transitórios e frágeis com
aqueles com quem compartilham a vida social.
Da
mesma maneira, Santos (1999) entende que no mundo globalizado observa-se um
capitalismo desorganizado, no qual o homem está obcecado pela diferença
procurando por distinção. Na modernidade, entende que há duas linhas de
construção da subjetividade que merecem destaque especial: a tensão entre
subjetividade individual e coletiva de um lado, e a subjetividade contextual e
universal de outro. “Na tensão entre subjetividade individual e
subjetividade coletiva, a prioridade é dada à subjetividade individual, na
tensão entre subjetividade contextual e subjetividade abstrata, a prioridade é
dada à subjetividade abstrata” (Santos, 1999, p.137).
A
complexidade originária do mundo capitalista trouxe, como conseqüência,
problemas para a identidade. A busca por uma hegemonia proposta e controlada
pelo Estado, estimula uma identidade reduzida porquanto genérica e abstrata. É
de Santos a afirmação: “concluo assim que, sob a igualdade do capitalismo,
a modernidade deixou que as múltiplas identidades e os respectivos contextos
intersubjetivos que a habitavam fossem reduzidos à lealdade terminal ao Estado,
uma lealdade omnívora das possíveis lealdades alternativas” (Santos, 1999, p.
142). Essas amarras assinaladas por Santos configuram a subjetividade do
homem moderno.
Santos
propõe uma análise crítica em que estejam relacionados três marcos da história
da modernidade, a saber: subjetividade, cidadania e emancipação. Para isso,
percorre um trajeto em que, de um lado, está a regulação e, de outro, a emancipação
e analisa como esses limites relacionam-se com a subjetividade.
O
projeto de modernidade, para Santos, é caracterizado por um equilíbrio entre
regulação e emancipação, sendo o primeiro sustentado pelos princípios de Estado
(Hobbes), de mercado (Locke) e comunidade (Rousseau), enquanto o pilar do
segundo - emancipação - se dá pela articulação entre três dimensões de
racionalização e secularização da vida coletiva: a racionalidade
cognitivo-experimental da ciência e técnicas modernas, a racionalidade
estético-expressiva e a racionalidade moral-prática do direito moderno. Na
verdade, o autor entende que o equilíbrio pretendido nunca foi alcançado,
oscilando ora a favor de um (regulação), ora a favor de outro (emancipação).
Para
demonstrar melhor estas oscilações, Santos propõe uma relação entre
subjetividade e cidadania, entendendo que esta última é mais restrita e,
exemplifica essa distinção por meio da teoria liberal, na qual a sociedade -
enquanto sociedade civil - não exerce a cidadania pela impossibilidade de
participação política. Introduz, assim, uma nova questão: a relação entre
democracia e participação.
A
sociedade liberal é caracterizada por uma tensão entre a subjectividade dos
agentes na sociedade civil e a subjectividade monumental do Estado. O mecanismo
regulador dessa tensão é o princípio de cidadania que, por um lado, limita os
poderes do Estado e, por outro, universaliza e igualiza as particularidades dos
sujeitos, de modo a facilitar o controle social de suas atividades e,
consequentemente, a regulação social. (Santos, 1999, p.240).
O
resultado dessas tensões parece estar sempre a favor do Estado e/ou sociedade,
reduzindo as possibilidades de expressão da subjetividade naquilo que, em
essência, é sua característica: a singularidade. Outra relação de tensão e,
ainda mais complexa, é a relação entre cidadania e subjetividade. Poder-se-ia
argumentar que a subjetividade se amplia e se enriquece quando a ela se lhe
acrescenta o princípio de cidadania, onde direitos e deveres são elementos
constitutivos. Mas, a crítica de Santos é a de que essa mesma subjetividade
fica reduzida porque os deveres e direitos se apresentam de forma abstrata e
universal, tornando impossível articular igualdade (cidadania) e diferença
(subjetividade).“A igualdade da cidadania colide, assim, com a diferença da
subjectividade”. (Santos, 1999, p.240).Esse dilema está presente em todo o
percurso da modernidade. A superação dessa tensão só ocorrerá, se a relação
entre cidadania e subjetividade for sustentada pela emancipação (Santos),
representando uma conquista do indivíduo e de sua subjetividade.
A
aspiração de autonomia,criatividade e reflexividade é transmutada em
privatismo, dessocialização e narcisismo, os quais, acoplados à vertigem
produtivista, servem para integrar, como nunca, os indivíduos na compulsão
consumista. ...(fazendo com que a) (...) personalização dos objetos
transforme estes em características de personalidade de quem os usa e, nessa
medida, os objetos transitam da esfera do ter a esfera do ser. (Santos, 1999,
p.255-256)
Nesse
processo, o cotidiano, meio no qual a intersubjetividade se desenvolve e tem
expressão, configura-se numa nova relação entre subjetividade e cidadania,
instituindo uma luta por um mundo e vida melhor, onde os excessos de regulação
e as opressões vivenciadas são os motivos das ações e reações do homem.
A
conquista por novos espaços de expressão e reconhecimento social, em que a
relação entre cidadania e subjetividade esteja assente na idéia de emancipação,
deve tomar como fundamento o princípio de comunidade de Rousseau que, segundo
Santos, articulava as idéias de obrigação política horizontal entre cidadãos e
a idéia de participação e solidariedade concreta, emergindo daí uma nova
cultura política e, “[...] em última instância, uma nova qualidade de
vida pessoal e coletiva assentes na autonomia e no auto-governo..”. (Santos,
1999, p.263).
Para
ampliar o debate, far-se-á uma incursão nos textos de Giddens (1991)
e Morin (1973). Para Giddens (1991), a comunidade sofreu uma destruição, no que
se refere às marcas deixadas pelo homem na constituição da vida social. Embora
os “lugares”, enquanto espaços apareçam cada vez mais integrados,
revelam-se territorialmente fragmentados, genéricos e iguais. Há
como que um “estranhamento”, onde o homem não se reconhece como constituinte
desse processo.
Na
modernidade, outras transformações são observadas no âmbito das relações
interpessoais: “as rotinas que são estruturadas por sistemas abstratos têm
um caráter vazio, amoralizado – isto vale também para a idéia de que o
impessoal submerge cada vez mais o pessoal”. (Giddens, 1991 p. 122). A
preocupação de Giddens é a de mostrar não uma ruptura entre o pessoal e o
social institucionalizado, mas explicitar novas bases sobre as quais se
desenvolve essa relação, onde situações tão diferentes e localizadas estão
diretamente interligadas. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a intimidade e a
impessoalidade adquirem um lugar de expressão comum, e espaço único,
indiferenciando-se enquanto especificidades.
Surge
daí um questionamento: a busca da auto-identificação seria uma forma
de narcisismo ou uma maneira do homem resistir às pressões das instituições
modernas ?
Talvez,
esse dilema possa ser melhor compreendido por meio da exposição de Giddens
sobre a fenomenologia da modernidade, que caracteriza em
...
quatro estruturas de vivência dialeticamente relacionadas: deslocamento e
reencaixe: intersecção de estranhamento e familiaridade. Intimidade e
impessoalidade: intersecção de confiança pessoal e laços impessoais. Perícia e
reapropriação: a intersecção de sintomas abstratos e cognoscibilidade
cotidiana. Privatismo e engajamento: a intersecção entre aceitação pragmática e
ativismo. (Giddens, 1991, p. 140).
Esse
é o movimento que caracteriza a vida cotidiana., onde as oscilações e
o direcionamento e redirecionamento respondem pela apreensão dos
fenômenos psicossociais, ao mesmo tempo em que a ambigüidade se mostra como
elemento constante.
[...]
– o mundo que se transforma gradativamente da familiaridade do lar e da
vizinhança local para um tempo – espaço indefinido – não é de modo algum um
mundo puramente impessoal... Vivemos num mundo povoado, não meramente um mundo
de rostos anônimos, vazios, e a interpolação de sistemas abstratos em nossas
atividades é intrínseco à sua realização. (Giddens, 1991 p.144)
Buscando
diferenciar sua posição da de outros estudiosos, Giddens denomina de
modernidade radicalizada (MR) sua concepção, em oposição à pós-modernidade (PM)
e, sintetiza suas idéias afirmando sua convicção no poder do homem em se
apropriar da vida cotidiana, apesar das perdas que sofre. Acredita, ainda, em
processos ativos de auto-identificação, onde a ambigüidade é uma
constante, expressa nas relações de integração e dispersão, engajamento e
pragmatismo, estranhamento e familiaridade. Sugere também que a solidão e
distanciamento do homem, como apontado por outros estudiosos é resultado de uma
percepção fatalista e desesperançosa do mundo moderno, onde não se percebe que
as transformações ocorridas oferecem novas oportunidades combinadas, é claro,
com limites e imposições.
Do
ponto de vista psicológico, é melhor compartilhar da visão de Giddens, pois
vislumbra possibilidades no horizonte do mundo humano.
Neste
momento, vale lembrar a percepção de Morin (1973 p.108) acerca do homem: O
homem histórico
“é”
um ser de uma afetividade intensa e instável, que sorri, chora, um ser ansioso
e angustiado, um ser gozador, ébrio, extático, violento, furioso, amante, um
ser invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte, mas que não pode
acreditar nela, um ser que segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos
espíritos e pelos deuses, um ser que se alimenta de ilusões e de quimeras, um
ser subjectivo cujas relações com o mundo objectivo são sempre incertas, um ser
sujeito ao êrro e à vagabundagem , um ser úbrico que produz desordem. (Morin,
1973, p.108).
Esse
homem multifacetado e ambíguo, cuja flexibilidade é responsável pela capacidade
de reorganização da vida cotidiana, é dono de uma plasticidade que sugere
sempre novas expectativas, novos domínios, novos “vir-a-ser”.
O
ceticismo de Santos (1999), deve ser visto como uma preocupação do homem
moderno e não como constatação de imposição e amarras apenas. Desconsiderar as
questões que apresenta do mundo globalizado seria assumir uma ignorância
intencional, uma recusa prévia em perceber a realidade como complexa e
contraditória. Quando afirma a prevalência da subjetividade individual e
abstrata, o faz fundamentado nas situações da realidade social que configuram o
homem na pós-modernidade. Mas, faz também uma proposição, denunciando os
dilemas que deve ser objeto de preocupação de todos. A superação desse dilema,
exige:
[...] uma
nova teoria da democracia que permita reconstruir o conceito de cidadania, uma
nova teoria da subjectividade que permita reconstruir o conceito de sujeito e
uma nova teoria da emancipação que não seja mais que o efeito teórico das duas
primeiras teorias na transformação da prática social levada a cabo pelo campo
social da emancipação. (Santos, 1999, p. 270).
Assim,
ao se tratar da subjetividade, deve-se ter em conta que a expressão do homem na
vida em sociedade requer uma análise e um projeto político, de forma que a
pessoa alcance projeção, garantindo seu espaço e reconhecimento social,
entendendo essa projeção como direito e privilégio de todos os seres humanos.
Não é possível compreender a subjetividade a não ser pela articulação entre
sistema político (participação e representação), autonomia (conhecimento e
reflexão crítica) e cidadania (igualdade de direitos e solidariedade).
Fonte:
LAURENTI,
C; BARROS, M. N. F. de. Identidade: questões conceituais e contextuais. Disponível
em: http://www.uel.br/ccb/psicologia/revista/textov2n13.htm.
Acesso 05 de out. 2013.
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